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Encontre o (a) Santo (a), Beato (a), Venerável ou Servo (a) de Deus

terça-feira, 29 de setembro de 2015

SÃO GREGÓRIO MAGNO, Papa, Doutor da Igreja e Reformador da Liturgia e Canto Litúrgico.




No fim do século VI, Roma desabava no caos e com ela agonizava toda uma civilização. Os rumos da história mudavam drasticamente quando um monge beneditino foi escolhido Papa. Era Gregório I, a quem a História qualificou de "o Magno".

 Como as furiosas e ritmadas ondas de um mar borrascoso irrompem com violência sobre as areias da praia, sucessivas hordas de invasores assolaram, durante mais de 150 anos, a península italiana. Em 410, os visigodos do rei Alarico I, após devastar vilas e campos, chegaram até Roma, cujas muralhas tinham 800 anos sem avistar um exército estrangeiro. E a esplendorosa e já decadente “cidade das sete colinas” foi saqueada durante três dias.

Em vão o Papa SãoLeão Magno tentou deter os vândalos que sulcavam impunemente, em rápidas naves, o Mar Mediterrâneo. O santo Pontífice obteve de seu rei, Genserico, apenas que a população fosse poupada. Mas durante duas trágicas semanas do ano 455, Roma foi minuciosamente pilhada por esses terríveis bárbaros.

Em 472, o suevo Ricimero, apoiado pelos burgúndios, sitiou a capital do império, onde tentou resistir um dos últimos soberanos latinos: Antêmio, mera sombra de autoridade num mundo cada vez mais convulsionado. No dia 11 de julho, a velha urbe foi, pelas tropas do caudilho suevo, saqueada mais uma vez.
Como conseqüência de intrigas políticas, Rômulo Augústulo, um jovem de 13 anos, foi proclamado soberano de um império que já não mais existia. Menos de um ano durou essa triste comédia: em 476, Odoacro, à cabeça de várias tribos de germanos, ocupou aquelas terras onde tremia e chorava de medo o último dos imperadores de Roma...

Uma nova horda de invasores submergiu a península no ano de 489: os ostrogodos. Quiçá 200 mil homens, calculam os historiadores. Em poucos anos, eliminaram os ocupantes da véspera, tornaram-se os donos da Itália e seu rei Teodorico entrou triunfalmente na cidade dos antigos césares.

Após a morte deste grande chefe, em 526, a península italiana transformou-se durante mais de duas décadas num imenso campo de batalha onde godos e bizantinos entrechocavam-se ferozmente, disputando palmo a palmo aquela terra ensangüentada. Várias vezes a Cidade Eterna foi sitiada e conquistada. Seus grandiosos monumentos e palácios desmoronavam-se e a população, outrora mais de um milhão de habitantes, somava agora menos de 100 mil seres desafortunados, na maioria oriunda de outras regiões desoladas pela guerra.

Finalmente, Belisário e Narses, geniais comandantes do exército bizantino, cujo imperador Justiniano reinava na distante e despreocupada Constantinopla, exterminaram o povo dos ostrogodos. Um capítulo trágico parecia concluído e o futuro despontava sereno no horizonte dos romanos sobreviventes.

A catástrofe

Mas o pior estava ainda por acontecer. O sonho da restauração de um passado grandioso evaporou-se no incêndio de uma nova convulsão social.

Como uma avalanche incontenível, em 568, desembocaram no norte da Itália 100 mil guerreiros seguidos por mais de 500 mil anciãos, mulheres e crianças: os lombardos. Esse povo bárbaro, de religião ariana, logo revelou ser um dos mais cruéis e sanguinários invasores que até então haviam penetrado na Europa ocidental. "À sua chegada, a Itália conservava ainda a forma romana nas suas cidades. Mas quando passavam os lombardos com os seus exércitos, desapareciam até os últimos vestígios da organização romana do município".1 Testemunhas desses acontecimentos narram que "as igrejas eram saqueadas, os sacerdotes assassinados, as cidades destruídas e mortos os seus habitantes".  Seu método de conquista consistia na violência e no terror, e para firmarem-se de modo definitivo naquelas terras, eliminavam metodicamente as elites latinas e o resto de aristocracia ainda subsistentes.

Todo o norte da Itália foi conquistado e para Roma acorriam os sobreviventes, fugindo dos horrores que acompanhavam a ocupação lombarda.


A luz da esperança

Outono de 589. Chuvas torrenciais abateram-se sobre a Itália. Os campos ficaram alagados, perderam-se as colheitas e quase todos os rios transbordaram, destruindo pontes e inundando muitas vilas e cidades.

Em Roma, o manso Tibre tornou-se uma torrente impetuosa. Saindo de seu leito e atingindo um nível jamais visto, as águas devastaram a cidade e submergiram no lodo seus bairros menos elevados. O inverno e o novo ano chegaram, e a chuva não cessava de cair. A catástrofe atingiu então proporções apocalípticas: à destruição e à fome acrescentou-se uma epidemia de peste bubônica que se alastrou rapidamente, dizimando a população. Roma agonizava, e muitos se perguntavam se não haveria chegado já o fim do mundo. No auge do drama, atingido pela peste em seu palácio de Latrão, faleceu o Papa Pelágio II.

Sentindo-se desamparados no meio da borrasca, os olhos de todos voltaram-se para a única Luz do mundo: às igrejas acorriam dia e noite os sobreviventes, implorando um raio da luz divina para dissipar as angústias e incertezas que obscureciam o horizonte.

Com efeito, ensina-nos o Papa Bento XVI: "A vida é como uma viagem no mar da História, com frequência enevoado e tempestuoso, uma viagem na qual perscrutamos os astros que nos indicam a rota [...]. Certamente, Jesus Cristo é a luz por antonomásia, o Sol erguido sobre todas as trevas da História. Mas para chegar até Ele precisamos também de luzes vizinhas, de pessoas que dão luz, recebida da luz dEle".

Assim, os romanos do final do século VI perceberam, admirados, que a luz divina já brilhava para eles num límpido espelho. Então o clero, o senado e todo o povo aclamaram a uma só voz: "Gregório Papa!" Era Gregório a "luz da esperança" que refulgia naquele ocaso de uma civilização.


Primeiros anos

Vox populi, vox Dei. Gregório foi, sem dúvida, o varão providencial escolhido por Deus para governar a Igreja naqueles tempos difíceis e decisivos.

Viera à luz no ano de 540, numa nobre e antiga família romana, profundamente católica e com longa história de fidelidade à Cátedra de São Pedro.

Eram seus pais o senador Gordiano, que no fim da vida entraria no estado eclesiástico, e Sílvia, dama conhecida por sua piedade e generosidade, que terminaria seus dias retirada do mundo e consagrada ao Senhor. Ambos, e duas tias de Gregório, Tarsila e Emiliana, são venerados como santos.

A mansão familiar erguia-se num dos lados do monte Célio, lugar privilegiado no centro da Roma antiga. Do alto de suas janelas, que dominavam a Via Triumphalis, podia Gregório avistar à direita o majestoso Arco de Constantino, que se erguia diante do Anfiteatro Flávio (o Coliseu) e, à esquerda, o já muito deteriorado Circo Máximo. À frente, do outro lado da avenida, elevava-se, abandonada, a imensa mole do conjunto dos palácios do Palatino, semidestruídos pelos tremores de terra, os incêndios e os saqueios dos bárbaros. A visão desse triste e monumental cenário não pôde ter deixado de despertar na alma romana de Gregório a esperança de uma futura restauração da grandeza perdida.

Entretanto, ao longo de sua infância e juventude, assistiu a acontecimentos que marcariam profundamente sua vida em sentido contrário.

Presenciou, certamente, na noite de 17 de dezembro de 546, a terrível entrada dos ostrogodos em Roma, seguida da deportação de seus habitantes durante 40 dias, período em que a cidade deserta ficou à mercê dos invasores. E quiçá contemplou, desolado, as muralhas da urbe arrasadas por ordem de Totila, o rei dos bárbaros.

Nesse contraste entre a piedade do ambiente doméstico, solidamente arraigado nas tradições romanas, e a instabilidade de um mundo novo que surgia na violência, transcorreram os primeiros anos da existência de Gregório.


Longa preparação

Após o aniquilamento dos ostrogodos pelo exército do imperador Justiniano, durante vários anos reinou na Itália uma relativa paz que permitiu a Gregório, seguindo a tradição familiar, cursar a carreira jurídica.

Sua aguda inteligência e incomum capacidade organizativa destacaram-no rapidamente nos meios cultos da época, e sua reputação aumentava com o passar dos anos. Entretanto, como dois robustos galhos de uma mesma árvore, cresciam no seu espírito o desejo de empreender grandes obras para ordenar aquela civilização cambaleante e o anelo de abandonar o mundo para consagrar-se unicamente à contemplação das realidades sobrenaturais.

 Quando contava pouco mais de 30 anos, foi nomeado prefeito de Roma, um dos mais altos cargos do governo da cidade. Desempenhou essa função com superior habilidade, enfrentando dificuldades de toda ordem, criadas pelo drama da invasão dos lombardos. Contudo, em meio das mais absorventes ocupações, ressoava sempre na sua alma o chamado a uma vida contemplativa: "Por longo tempo diferi a graça da conversão, ou seja, da profissão religiosa, e, ainda após ter sentido a inspiração de um desejo celeste, eu acreditava ser melhor conservar o hábito secular. Neste período manifestava-se em mim no amor à eternidade, aquilo que eu devia procurar, mas as ocupações assumidas acorrentavam- me" – confessava ele, anos depois, numa carta dirigida a São Leandro de Sevilha.

Em 575, concluiu-se o tempo prescrito e Gregório, aliviado, deixou o mais prestigioso cargo da cidade. Três anos transcorridos procurando solucionar casos e situações irremediáveis, convenceram-no da inutilidade de qualquer esforço humano para salvar aquela civilização: sim, a grandeza temporal da urbe dos césares havia naufragado. Esperar, só em Deus...

A graça operou então a definitiva conversão daquela alma feita para voar nos horizontes infinitos da Fé.


Gregório, monge

Junto com as esperanças terrenas, Gregório deixou para sempre a púrpura do patriciado e revestiu-se das insígnias de uma nobreza mais alta: o hábito monacal. Mas, ao invés de abandonar a conturbada Roma e partir para algum claustro distante, transformou o palácio senatorial do Monte Célio em mosteiro beneditino, sob a invocação de Santo André.

Entregando o governo da casa a um experimentado abade chamado Valêncio, começou como humilde súdito sua vida religiosa. Foram os anos mais felizes de sua existência.

Nesse período, pôde Gregório saciar os seus anelos de isolamento, e abundantes graças místicas de contemplação lhe foram concedidas. Com indizíveis saudades, escreveu décadas depois: "Quando vivia no mosteiro, podia ter, de modo quase contínuo, a mente fixa na oração".


A luz sobre o candeeiro

Entretanto, "não se acende uma luz para colocá-la debaixo do alqueire, mas sim para ser posta sobre o candeeiro" (Mt 5, 15). A Sabedoria divina ia lentamente preparando esse varão incomum, por vias não imaginadas por ele, para ser uma verdadeira luz do mundo a brilhar no firmamento da Igreja e da Civilização Cristã.

Após quatro anos de paz monacal foi, por ordem do Papa Bento I, ordenado diácono regional, ou seja, encarregado da administração de uma das regiões eclesiásticas que nessa época dividiam a cidade de Roma. E, pouco depois, o novo Papa, Pelágio II, que reconhecia em Gregório uma longa experiência em assuntos seculares e uma provada virtude, o enviou como apocrisiário (núncio) à capital do Império do Oriente, Constantinopla.

"Como sucede às vezes a uma nave, atada ao cais de modo descuidado, ser arrastada pelas ondas para fora do porto quando sobrevém uma tormenta, assim encontrei-me subitamente no oceano dos assuntos do século" 7, escrevia ele, narrando sua nova situação.

Seis anos de intenso labor na corte imperial proporcionaram a Gregório um útil contato com a cultura e a grandeza bizantinas, mas também com a sinuosa e ambígua política de seus soberanos. As tendências heterodoxas de monofisismo e nestorianismo, que ainda crepitavam ali, foram combatidas com destemor pelo apocrisiário, o qual sabia aliar aos argumentos teológicos uma fina habilidade diplomática.

Sempre acompanhado por alguns monges de Santo André do Monte Célio, Gregório manteve no belo palácio à beira do Bósforo, onde residiam os apocrisiários do Papa, a vida sacral de um religioso, filho de São Bento. Apesar das múltiplas ocupações, todos ali rezavam, cantavam e estudavam as Escrituras, na inteira observância da disciplina monástica.

Por volta do ano 585, pôde Gregório retornar a Roma. Seu maior desejo era retirar-se definitivamente do mundo e enclausurar-se em seu amado mosteiro de Santo André. Porém, os deveres do apostolado e a voz da obediência o chamaram mais uma vez para outros caminhos.

Uma antiga tradição refere que certo dia, caminhando pelas ruas da cidade, ele deparou-se com um grupo de jovens escravos anglos, provindos da longínqua Britânia. Contristado, ao ver gente tão cheia de qualidades submersa nas trevas do paganismo, exclamou: "Não são anglos, mas anjos"! Providencial encontro que o moveria a fazer todo o possível para levar a luz do Evangelho a esse povo e, mais tarde, a promover a conversão de todos os novos e temidos habitantes de Europa: os bárbaros.

Pediu licença ao Papa para dirigir-se ao país dos anglos, com o objetivo de trazê-los ao seio da Igreja. Mas, atendendo às súplicas do povo romano, que não queria ver-se privado de um varão cuja santidade já era notória, Pelágio II o reteve na Cidade Eterna e, ademais, o chamou a si, para servir-se dele como experimentado conselheiro.



A mais alta das cruzes

Após o falecimento de Pelágio II, foi Gregório o escolhido, por unânime aclamação, para ocupar o trono de São Pedro. Considerando-se, porém, indigno, e espantado diante da incomensurável responsabilidade, fugiu de Roma e ocultou-se nas montanhas e florestas vizinhas. Lá foi achado pelo povo e, então, submeteu-se humildemente diante dos inequívocos sinais da vontade divina. A seu amigo João, Bispo de Ravena, que o censurou por não aceitar imediatamente a eleição, escreveria depois, assumindo a repreensão: "Com benigno e humilde afeto, desaprovas, irmão caríssimo, o fato de haver eu fugido, escondendo-me, do peso do governo pastoral!".

Foi solenemente sagrado na Basílica de São Pedro, no dia 3 de setembro de 590. Contudo, tendo sempre diante de si a própria insuficiência e indignidade, manifestava sinceramente sua consternação: "Sinto-me de tal modo esmagado pela dor, que apenas posso falar. Tudo o que contemplo causa-me tristeza, e aquilo que para os outros é motivo de consolação, a mim parece-me aflitivo".

Mas se a humildade o fazia tremer, a Fé na invencibilidade da Cátedra de Pedro incutia-lhe uma sobrenatural fortaleza: "Estou disposto a morrer antes de ser causa de ruína para a Igreja de Pedro. Acostumei-me a sofrer com paciência, mas, uma vez decidido, lanço-me com ânimo resoluto em direção a todos os perigos".


O ponto de vista profético

Gregório I subia ao supremo pontificado, numa cidade desmantelada, símbolo de uma civilização em agonia, e numa Igreja convulsionada pelas invasões, por cismas e relaxamentos. Entretanto, a inspirada clarividência que o caracterizaria até o fim, manifestou-se desde o primeiro momento de seu governo. Diante de uma sociedade devastada por crises aparentemente insolúveis, ele apresentou o ideal da vida cristã em toda a sua radical integridade. O imenso vazio deixado pelo desaparecimento do ius civitatis romano só poderia ser preenchido pelo donum caritatis cristão. O objetivo principal do “Papa monge” seria, pois, elevar continuamente os espíritos à consideração das realidades sobrenaturais, para então viver os acontecimentos temporais sob uma perspectiva eterna. Esse programa, ele o deixou bem delineado na sua primeira homilia ao povo romano, no segundo domingo do Advento de 590.

Assim procedendo, São Gregório fechava para sempre a última porta que unia a Europa com o mundo antigo, nascido do paganismo, e plantava a semente de uma nova civilização que cresceria sob a luz do Evangelho, regada pelo preciosíssimo Sangue de Nosso Senhor Jesus Cristo.


Pastor das almas

Durante os primeiros anos de seu pontificado, a península italiana atravessava uma das piores fases do conflito lombardo. Assim descreveu São Gregório aqueles dias calamitosos: "Por todos os lados vemos luto e escutamos gemidos. As vilas foram destruídas, os castelos demolidos, os campos tornaram-se desertos, a terra está desolada e já não há quem a cultive; poucos habitantes ainda ocupam as cidades. Estamos contemplando a que extremo foi reduzida Roma, a mesma que outrora parecia ser a senhora do mundo! Muitas vezes quebrantada por dores imensas, pela desolação de seus cidadãos, pelos ataques de seus inimigos e as ruínas freqüentes... Nela desapareceu todo o esplendor das glórias terrenas. Desprezemos com toda a alma este mundo quase extinto, e imitemos a conduta dos santos".

Abandonada quase totalmente pelos bizantinos, a antiga urbe foi duas vezes sitiada pelos ferozes lombardos. Mas em ambas, graças à fortaleza e habilidade do novo Papa, o cerco foi levantado e eles se retiraram. Empenhado não na destruição, mas na conversão dos invasores, São Gregório assinou uma trégua com eles e procurou por todos os meios atraí-los à verdadeira Fé. Depois de não poucas tentativas, foi possível - graças ao fervor e à influência da princesa Teodolinda, filha do rei católico da Baviera e esposa do caudilho dos lombardos - batizar o filho do casal e preparar assim a futura conversão de todo o povo.

A sede de almas do Sumo Pontífice fez reflorescer para a Igreja todo o ocidente da Europa. Na Espanha, apoiou eficazmente São Leandro na difícil evangelização dos visigodos arianos. Quando, por fim, o monarca dessa nação abraçou a religião verdadeira, escreveu São Gregório, cheio de júbilo: "Não posso exprimir com palavras a alegria que sinto porque o glorioso rei Recaredo, nosso filho, aderiu à Fé católica com sincera devoção". A Gália mereceu especial atenção do santo Papa. Travou ele boas relações com os soberanos francos, renovou o clero decadente e simoníaco, ordenou a convocação de sínodos e procurou com energia pôr fim às cruéis práticas pagãs que ainda perduravam.

Onde pôde São Gregório manifestar todo seu ardor missionário, foi na conversão da Grã Bretanha. Outrora província do Império, esta ilha tinha sido evangelizada já nos primórdios do Cristianismo. Porém, invadida e dominada pelas tribos dos bárbaros anglos e saxões, a luz da Fé quase se havia apagado. O Pontífice não poupou esforços na conversão desse povo: estabeleceu uma casa de formação em Roma para os jovens anglo-saxões, conseguiu que um dos seus reis contraísse núpcias com uma princesa católica da França e, sobretudo, para lá enviou um grande número de missionários. Destacou-se entre eles Agostinho, que mais tarde seria Arcebispo de Cantuária e que, segundo narram as crônicas, batizou mais de 10 mil neófitos no dia de Pentecostes de 597. Sem dúvida, a conversão deste povo constitui o episódio culminante da obra evangelizadora de São Gregório.


O grande Papa Gregório I, embelezou

ainda mais a Liturgia da Igreja
Uma luz inextinguível

No ano de 604, Gregório, na paz dos justos, entregava a alma ao Pastor dos pastores. Apesar de várias moléstias que lhe causavam sofrimentos terríveis, permaneceu firme e vigilante até o fim. A sentinela de Israel partia, mas a luz por ele acendida, "brilhará diante dos homens" (Mt 5, 16) até a consumação dos séculos.

Tudo nesse varão providencial fora grande, graças à sua humilde docilidade diante dos desígnios do Espírito Divino que governa a Esposa de Cristo. Quando todo um mundo parecia desabar no caos, soube São Gregório confiar cegamente no triunfo da Santa Igreja e, pelo dom de sabedoria que o Espírito Santo lhe concedera, discernir novos rumos e metas para o povo de Deus. Pode-se afirmar, sem a menor pelo vastíssimo horizonte descortinado por seu olhar contemplativo passaram todos os problemas do tempo, e não houve obra que ele deixasse de empreender para alargar o Reino de Cristo dúvida, que.

A vida desse Papa admirável constitui um marco fundamental na História da Igreja. Publicou a "Regra Pastoral", um verdadeiro manual de santidade para os pastores do rebanho do Senhor; reformou a Liturgia, criando o estilo de canto que hoje leva seu nome; e fez do conjunto do seu Pontificado o ponto de partida de uma nova civilização, inteiramente cristã.

No entanto, seu único e ardente desejo era servir incondicionalmente, como simples escravo, a Jesus Cristo, o Rei Eterno. Por isso, enquanto do alto da Cátedra de Pedro regia os destinos do mundo, não quis receber outro título senão o de servus servorum Dei - servo dos servos de Deus.

E a Santa Igreja, com maternal gratidão, uniu a grandeza ao nome do escravo: para todo sempre será ele chamado São Gregório, o Magno.


(Pe. Pedro Rafael Morazzani Arráiz, EP - Revista Arautos do Evangelho, Set/2008, n. 81, p. 32 à 37)

domingo, 27 de setembro de 2015

Venerável Serva de Deus Luísa Margarida Claret de la Touche, Virgem da Ordem da Visitação.


Madre Luísa Margarida Claret de la Touche, monja da Visitação, nasceu em Saint-Germain-en-Lay (França) no dia 15 de Março de 1868, numa família burguesa e abastada. Atraída pela vida contemplativa, entrou no mosteiro da Visitação de Romans, na diocese de Valence, a 20 de novembro de 1890.
Vivia numa profunda união com o Senhor e forte espiritualidade. No ano de 1902, o Senhor revelou a Irmã Luísa Margarida o que tinha a dizer aos sacerdotes e o que devia fazer para a santificação deles.
No dia 5 de junho desse ano, vésperas da festa do Sagrado Coração de Jesus, recebe uma missão particular para cumprir na Igreja: recordar aos sacerdotes as inexplicáveis riquezas do amor do Coração de Cristo, continuando a missão já iniciada com as revelações a Santa Margarida Maria Alacoque.
Nas várias revelações recebidas de Nosso Senhor em datas diferentes, a missão abrange a santificação dos sacerdotes, a união destes com os bispos e entre si, e a irradiação no mundo do amor do Coração de Jesus.
Em razão da certeza do grande amor que esse mesmo Coração tem por seus sacerdotes, e a confiança neles depositada, numa revelação Irmã Luísa Margarida intui: “Preciso deles para realizar a minha Obra!” Esta obra toma o nome de “Aliança Sacerdotal”.
Em sua vida, as mensagens começaram num momento em que a Igreja está abalada pelas teorias modernas, que em alguns casos conseguem demolir as próprias verdades da fé. Ela, na sua simplicidade, traz à Igreja uma evocação forte para ler a história como sinal do Amor divino e um convite específico aos sacerdotes para tornar visível o amor e a misericórdia de Deus pelo mundo.
A essência das revelações e das suas inspirações se encontra no livro “O Sagrado Coração e o Sacerdócio” , assim como em uma oração pelos sacerdotes, difundida desde 1905 e traduzida em 22 línguas.
Madre Luísa Margarida indicou caminhos e percursos ainda não abertos, e que desabrocham com o Concílio Vaticano II, em Presbytorum Ordinis, Pastores dabo vobis, ajudando os sacerdotes a crescerem na oração, na comunhão e na unidade.
Tantas páginas do diário de Madre Luísa Margarida podem ser lidas, hoje, como profecia de quanto amadureceu a Igreja com o Concílio.
Nos inícios do século XX, ainda na Ordem da Visitação, deu início, na Itália, em Vische-Turim, a partir de seus escritos e de sua ação apostólica, às Obras: Aliança Sacerdotal - 1913 (para sacerdotes), e um novo mosteiro contemplativo em 1914 como suporte exclusivo da Aliança Sacerdotal. Diante da resistência dos superiores da Visitação viu-se obrigada a deixar a Ordem para assegurar o bom êxito das suas atividades apostólicas.
Faleceu em 1915 após uma vida de forte espiritualidade, cumprindo a missão que recebeu do Senhor de propagar a fé e a devoção a Deus-Amor Infinito.
Em 1918 o Mosteiro contemplativo por ela fundado na Visitação tornou-se uma Congregação independente com o nome definitivo de Betânia do Sagrado Coração.

Venerável Serva de Deus Joana Carlota de Bréchard, Virgem da Ordem da Visitação.


 
A Serva de Deus, Madre Joana Carlota, foi a segunda companheira de Santa Joana Francisca Fremiot de Chantal na fundação da Ordem da Visitação de Santa Maria. Nasceu em Vellerot (Côte-d’Or), 1580.
Bem educada para viver em sociedade, era dotada de um coração extremamente generoso. E na vida religiosa Deus a conduziu pela via dos sofrimentos que ela recebia humildemente da mão de Nosso Senhor.
Era ardente em praticar a caridade, zelosa pela salvação das almas. Faleceu em Riom (França), em odor de santidade. Seu corpo ficou incorrupto durante muitos anos exalando suave perfume. Por sua intercessão, foram registrados vários milagres e inúmeras graças alcançadas.
O Processo de beatificação, iniciado pouco após a sua morte, foi interrompido por ocasião da Revolução francesa. As religiosas da Visitação, buscando a continuidade desse Processo, pedem às pessoas que obtiverem graças por seu intermédio, comunicá-las ao Mosteiro da Visitação - São Paulo.

Pensamentos da Serva de Deus:
“Lancemo-nos cm todas as nossas preocupações nos braços da Divina Providência porque ela governa com suavidade aqueles que se lhe confiam”.
“Não vos compareis a ninguém. Deixai que cada um siga o seu próprio caminho. E vós, segui o vosso segundo a vontade de Deus”.
“Ventos e tempestades passam, mas Deus e suas obras permanecem para sempre”.

Oração:
Santíssima Trindade, pela intercessão de São Francisco de Sales e Santa Joana de Chantal, dignai-vos glorificar a vossa Serva Joana Carlota de Bréchard, que, ardendo em caridade divina, tanto se dedicou aos pobres e trabalhou pela extensão da vida religiosa contemplativa. Concedei-nos por sua valiosa proteção, e seguindo seu exemplo, amar-vos acima de tudo e dispor de nossos bens e de nosso tempo, indo em socorro de nossos irmãos mais necessitados. E, se for para vossa maior glória, a graça que solicito...


quinta-feira, 24 de setembro de 2015

SÃO JUNÍPERO SERRA, Presbítero Franciscano e Missionário. Conhecido como o Apóstolo da Califórnia.



Sacerdote da Primeira Ordem, apóstolo da Califórnia (1713-1784). Beatificado por São João Paulo II em setembro de 1988. Canonizado pelo Papa Francisco, em sua visita aos EUA em setembro de 2015.

Este santo, conhecido como o Apóstolo da Califórnia, nasceu em Petra na ilha de Maiorca, a 24 de novembro de 1713, de Antônio Serra e Margarida Ferrer, pais exemplares pelos costumes e piedade, embora pessoas de pouca instrução. A criança foi batizada com o nome de Miguel José e foi crismado com a idade de apenas dois anos, por ocasião da visita do bispo de Maiorca, Atanásio Esterripa.
 Criança ainda, ajudava os pais nos trabalhos do campo e frequentou a escola anexa ao convento franciscano de São Bernardino, dando provas de inteligência viva e aberta e desta forma pôde ser encaminhado para fazer estudos superiores.
Depois de um ano de estudos filosóficos no convento de São Francisco de Palma, com 17 anos, vestiu o hábito franciscano no convento Santa Maria de Jesus. A 15 de setembro de 1731 emitiu os votos religiosos mudando o nome de batismo para o de Junípero, devido à grande admiração que tinha para com Frei Junípero, um dos primeiros companheiros de São Francisco. Concluídos com brilhantismo os estudos teológicos, foi ordenado diácono em 1736 e, posteriormente, sacerdote. Em 1743, já tinha sido designado para o ensino de filosofia no convento de São Francisco de Palma. Nesse período manifestou dotes de fino orador. Foi chamado a ocupar a cátedra de teologia escotista na Universidade Lulliana de Palma de Maiorca. Nunca haveria de deixar o ministério da pregação.
Aos 35 anos de idade, não obstante a fecundidade de seu apostolado na ilha, Frei Junípero, obedecendo a uma vocação interior, partiu rumo às Missões da América junto com um seu discípulo, Frei Francisco Palòu. Os dois permanecerão juntos por toda a vida. Partiram no dia 13 de abril de 1749, de Málaga. Depois de dramática travessia, chegaram a São João de Porto Rico no dia 18 de outubro e a 7 de dezembro alcançaram Vera Cruz, na costa sul do México. A pé, prosseguiram até a cidade do México.
Passou a exercer apostolado junto aos indígenas falando em sua língua. Fez um catecismo na língua do povo e ensinava rudimentos de ciência e técnicas a respeito do trabalho da terra. Graças à ajuda dos que eram missionados, Junípero e seu colega puderam construir em Santiago de Jalpán uma igreja de pedra, de estilo barroco ainda hoje tido como monumento de interesse histórico e tomado, posteriormente, como modelo para a realização de quatro outras igrejas na missão.
Em seu trabalho pastoral insistia nas graças dos sacramentos da Eucaristia e da Reconciliação. Costumava confessar-se a seu confrade Frei Francisco diante de todos, antes da celebração da Missa. Levou os indígenas a uma qualidade de vida respeitável e digna.
O colégio de São Ferdinando (Fernando), ao qual padre Serra pertencia, em 1751 contava com cinco missões das quais ele tinha sido nomeado presidente e primeiro responsável até que foi enviado por seus superiores ao Texas para restaurar a missão de São Sabas, destruída, um pouco antes, pelos índios Apaches; tarefa pouco depois revogada, devido ao perigo que comportava para o missionário. De 1758 até 1767 permaneceu no colégio apostólico de São Ferdinando como mestre de noviços e pregador de missões em várias dioceses mexicanas.
Nunca deixou de frisar a importância das celebrações litúrgicas, mas, sobretudo, implantará modelo de vida comunitária e de organização econômica, ensinando como trabalhar o campo, criar o gado e exercitar-se na arte da cerâmica.
Em junho de 1767, depois da expulsão dos jesuítas das possessões do vice-reino de Espanha por decisão de Carlos III, as missões da Baixa Califórnia foram confiadas aos Franciscanos e Frei Junípero foi nomeado seu superior. Em 1º de abril de 1768, junto com 14 companheiros, empreendeu a corajosa e extenuante viagem rumo à península da Baixa Califórnia, cujo clima é caracterizado por longos períodos de seca e de temperaturas muito elevadas. Estabeleceu o quartel general da missão em Loreto. Fez o que pode sempre sob a vigilância do governo civil sobre as missões. Incansável foi seu trabalho também porque a população local vivia somente de caça e da pesca desconhecendo as técnicas do cultivo da terra.
Depois de dois anos, devido também às condições econômicas favoráveis, pôde fundar a primeira missão californiana de San Diego de Alcalà. Deslocou-se na direção da Alta Califórnia e fundou as Missões de São Carlos Borromeu, de Santo Antônio de Pádua, São Gabriel e de São Luis Bispo e muitas outras.
Segue-se um período de incompreensão com um comandante militar da Nova Espanha, José de Galvez. Por este motivo, o santo retirou-se a pé para o México permanecendo no Colégio de São Ferdinando até 13 de março de 1774. Volta aos antigos campos de atividade.
A missão prosseguia lenta, mas perseverantemente. Foram refundadas as missões destruídas pelos índios e abertas outras novas. No final de tudo, retirou-se com seu confrade fiel para Monterey, na Califórnia, que escreveu a biografia do santo como testemunha ocular.
Merecidamente, Junípero Serra foi definido como um colosso de evangelizador. Durante dezessete anos, precisamente de 1767 a 1784 percorreu, apenas na Califórnia, perto de 9.900km a pé, 5.400 em embarcação, não obstante a idade e as enfermidades. Fundou nove missões, das quais derivam os nomes franciscanos de cidades californianas muito importantes, como São Francisco, São Diego, Los Angeles, etc.
Frei Junípero, fortemente debilitado em sua saúde, pela asma e gangrena numa perna, morreu a 28 de agosto de 1784 no retiro do Carmelo de Monterrey na Califórnia com 71 anos de idade, sendo que 36 deles foram dedicados à missão.

São Junípero Serra batizando uma bebê indígena. 

Considerado o pai dos índios, foi honrado como herói nacional. Desde 1º de março de 1931, a sua estátua representando o Estado da Califórnia, está entre as outras dos Pais fundadores dos Estados Unidos na Sala do Congresso de Washington, estátua única de um religioso no Santuário dos americanos ilustres. O ponto mais alto da cordilheira de montanhas de Santa Lucia na Califórnia tem o seu nome.
 (Tradução e adaptação da obra Frati Minori Santi e Beati, publicada pela Postulação Geral da Ordem dos Frades Menores, Roma 2009, p. 334-337).

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quarta-feira, 23 de setembro de 2015

SANTO AGOSTINHO DE HIPONA, Bispo e Doutor da Igreja, Farol de Sabedoria e de Amor a Deus.



De pecador a modelo de perfeição espiritual, Santo Agostinho abraçou a Fé católica com fervor e zelo invulgares, defendendo-a e a enriquecendo com a extraordinária inteligência que lhe foi concedida por Deus.


Considerado um dos mais luminosos teólogos da Igreja em todos os tempos, Santo Agostinho legou à História não apenas seus tratados espirituais, como também a narrativa da própria conversão, a descrição de suas lutas interiores e de seu triunfo sobre o pecado. "Confissões", a célebre obra do Bispo de Hipona, tem produzido inúmeros frutos de emenda de vida, de retomada do caminho da virtude, por parte dos que se deixaram tocar pelo exemplo desse herói da Fé.

Antes de comentarmos uma eloquente passagem dessa autobiografia, convém tomarmos conhecimento de alguns breves contornos do perfil de Santo Agostinho.


Retórico e filósofo ilustre

Pai por excelência de todos os Padres da Igreja, Doutor da graça, monge, pastor, teólogo, autor de uma obra monumental e escritor de gênio, Agostinho permanece o símbolo vivo do convertido, não cessando de influenciar o espírito e o imaginário da Europa.

Esse romano da África, de origem berbere, nascido no ano de 354, em Tagaste, na atual Argélia, alcançou grande renome por seu extraordinário domínio das artes liberais, e foi considerado por seus contemporâneos como o mais ilustre dos retóricos e o mais autorizado dos filósofos. Adepto de Cícero, o jovem Agostinho vai para Cartago, e depois para Roma e Milão, que era então a capital do Império. As suas peregrinações espirituais o levaram a aderir ao maniqueísmo, mas é o encontro com o cristianismo que vai revolucionar a sua existência. Aos trinta e dois anos, por insistência de sua mãe, Santa Mônica, e de Santo Ambrósio, e após uma revelação sobrenatural nos jardins da sua casa, Agostinho pede que seja batizado.

"Diz uma tradição que, terminada a cerimônia do Batismo, Santo Ambrósio exclamou: ‘Te Deum laudamus!', e que Santo Agostinho acrescentou: ‘Te Dominum confittemur!'; e assim, alternando suas frases um e outro, entre os dois improvisaram naquela ocasião os conceitos e palavras que compõem o cântico litúrgico do ‘Te Deum'.



Incansável adversário da heresia

Depois de um breve retiro em Cassiciaco, Agostinho volta à sua terra natal, torna-se monge e consagra três anos à oração e ao estudo.

Em 391, o Bispo Valério de Hipona (atual Annaba) chama-o para junto de si. Agostinho suceder-lhe-á em 395 nessa importante sede episcopal. Começa então para esse pregador e catequista infatigável uma era de grandes controvérsias - contra os donatistas, em primeiro lugar, que negam aos ‘lapsi' (apóstatas) o perdão da Igreja; em seguida contra os pelagianos, que atribuem exclusivamente ao homem o mérito da salvação.

O Bispo de Hipona descobre em si uma vocação de lutador contra as heresias, capaz não só de inscrever a sua reflexão nas problemáticas do seu tempo, como também de edificar uma autêntica Teologia perene. No fim da sua vida, já em plena invasão dos Vândalos, enfrentou um último desvio à Fé: o dos homeanos, que negam o dogma cristológico.



A tristeza, companheira no fim da vida

Por volta do ano 430, os bárbaros devastam totalmente o norte da África. Ao atingirem Hipona, os invasores a cercaram e lhe impuseram um rigoroso assédio. Este acontecimento agravou a já amarga e triste ancianidade de Santo Agostinho, que sofreu mais do que todos, e se alimentou de dia e de noite com a torrente de lágrimas que brotavam de seus olhos ao ver como uns caíam mortos e outros fugiam, e ao considerar que as igrejas ficavam viúvas de seus sacerdotes, e as populações arrasadas se transformavam em desertos.

Como os horrores continuassem, reuniu seus monges e lhes disse: “Pedi ao Senhor que nos tire desta angustiosa situação, ou nos dê forças para suportá-la, ou me leve desta vida e me livre de presenciar tantas calamidades”.

O Senhor o ouviu e lhe concedeu a terceira dessas petições. Meses após o início do cerco da cidade, Santo Agostinho caiu enfermo. Compreendendo que o dia de sua morte se aproximava, mandou que escrevessem os Sete Salmos Penitenciais em grandes cartazes e os pregassem a uma das paredes de sua cela, de maneira a poder lê-los e rezá-los a partir do leito em que se achava prostrado. Assim foi feito, e o Santo, sempre com imensa emoção de alma, recitava constantemente ditas orações.

Pouco antes de sua morte, Santo Agostinho teve essas interessantes palavras: “Ninguém, por muito virtuosamente que tenha vivido, deve sair deste mundo sem fazer previamente confissão de seus pecados e sem receber a Eucaristia”.

Até o último momento de sua vida conservou perfeito estado de suas faculdades, seus membros e sua vista, de maneira que, com completa lucidez mental, no instante supremo, rodeado de seus monges que o assistiam com suas preces, aos 77 anos de idade e 40 de episcopado entregou seu espírito a Deus.

Apaixonado investigador da verdade

Luminosíssimo farol de sabedoria, baluarte da ortodoxia, fortaleza inexpugnável da Fé, sobressaindo em talento e ciência entre os demais doutores da Igreja, Agostinho foi homem eminente, tanto pelos exemplos de suas virtudes, quanto pela riqueza de sua doutrina.

A obra que deixou é imensa. Cento e treze Tratados, entre os quais se destacam o ‘De Trinitate' e ‘A Cidade de Deus' que inaugura a teologia da História; 218 epístolas, mais de 500 ‘Sermões', ‘Diálogos' e ‘Comentários' bíblicos, e, por fim, essa obra singular que são as ‘Confissões', a primeira autobiografia de todos os tempos. “A sua teologia, feita de experiência e permanentemente existencial, eleva-se até a contemplação pura, sem ignorar a psicologia, a historicidade, a realidade humana. Da iluminação fulgurante da sua juventude ao final da sua velhice, Santo Agostinho nunca deixou de meditar sobre o dom feito por Deus ao homem, e que faz dele um investigador apaixonado da verdade”

"Dai-me o que me ordenais; ordenai-me o que quiserdes!"

Vemos, portanto, como Santo Agostinho se destacou não apenas por suas insignes virtudes, mas também pela luminosa sabedoria que Deus lhe concedeu, a fim de utilizá-la para o bem das almas e da doutrina católica.

Em seu famoso livro autobiográfico - "Confissões" - tem ele esta linda passagem sobre a qual gostaria de tecer alguns breves comentários: "Tarde Vos amei, ó Beleza tão antiga e sempre nova. Tarde Vos amei! Eis que habitáveis dentro de mim, e eu lá fora a procurar-Vos! Disforme, lançava-me sobre estas formosuras que criastes. Estáveis comigo, e eu não estava convosco! Retinha-me longe de Vós aquilo que não existiria se não existisse em Vós. Porém, chamaste-me com uma voz tão forte que rompestes a minha surdez. Brilhastes, cintilastes e logo afugentastes a minha cegueira! Exalastes perfume: respirei-o suspirando por Vós. Saboreei-Vos, e agora tenho sede e fome de Vós. Tocastes-me e ardi no desejo da vossa paz. Só na grandeza da vossa misericórdia coloca toda a minha esperança. Dai-me o que me ordenais, e ordenai-me o que quiserdes. "Ora, afirmou um sábio: ‘É já um efeito da inteligência saber que ninguém pode ser casto sem o dom de Deus'. Pela continência, reunimo-nos e nos reduzimos à unidade, da qual nos afastamos ao nos derramarmos por inumeráveis criaturas. Pouco Vos ama aquele que ama, ao mesmo tempo, outra criatura sem ser por vossa causa. Ó amor que sempre ardeis e nunca Vos extinguis! Ó caridade, ó meu Deus, inflamai-me! Ordenais-me a continência. Dai-me o que me ordenais e ordenai-me o que quiserdes”! Trata-se de um texto tão elevado e nobre que sua intelecção pode parecer, à primeira vista, um pouco árdua.

Belos jogos de palavras

Santo Agostinho faz alguns jogos de palavras, muito apreciados pelos antigos. Não sei como soam e que sabor tem na audição e no paladar espiritual das gerações posteriores à minha, mas a meu ver são lindíssimos.  Como se sabe, Santo Agostinho se converteu na idade madura, após ter levado uma vida de pecados. Por isso, se dirige a Deus dizendo:

"Tarde Vos amei", e utiliza o primeiro jogo de palavras: "Ó Beleza tão antiga e sempre nova". O Criador é antigo, pois, sendo eterno, existiu antes de todos os séculos. Mas é uma Beleza sempre renovada, porque é infinito, manifestando continuamente algo de inédito à nossa consideração. E o homem, adorando-O por tais predicados, encontra em Deus a plenitude, a perfeição expressa pelo aludido jogo de palavras. Este como que vincula dons antitéticos que o espírito humano não saberia unir. Exclama o Santo: "Eis que habitáveis dentro de mim e eu lá fora a procurar-Vos!"

Em todos os homens, sobretudo nos batizados, Deus age de modo permanente através da ação da graça. Portanto, o Altíssimo permanecia no interior de Santo Agostinho. Porém, como um louco, ele O procurava fora, almejando um contentamento que as criaturas não dão, pois a verdadeira felicidade está dentro de nós.

Vemos, então, outro jogo de palavras: dentro e fora. Ele possuía, no mais fundo da alma, aquilo que tinha o desatino de procurar fora. Continua o Bispo de Hipona: "Disforme, lançava-me sobre estas formosuras que criastes. Estáveis comigo, e eu não estava convosco!"

Quer dizer, Deus habitava em seu interior, mas ele não permanecia com o Senhor. É uma antítese, sem ser uma contradição.

Recebemos graças para obedecer às ordens divinas

Em certo trecho, Santo Agostinho tem esta linda afirmação: Deus nos proporciona aquilo que nos ordena. O que significa isso?

Quando o Criador nos prescreve um mandamento, nos concede anteriormente a possibilidade de observá-lo. Assim, antes de nos preceituar a castidade, Ele nos dá a graça para praticá-la. Pois Deus, ao contrário de certos dirigentes humanos, é um bom Pai e nos governa pelas regras da sua inesgotável misericórdia.
Com base nessa concepção, Santo Agostinho apresenta uma interessante justificativa para a castidade. Segundo ele, o bem de cada ser e o da ordem do universo é a unidade. O homem puro é aquele que ama a Deus acima de tudo, e as outras coisas por amor ao Criador. Pelo contrário, o impuro corre atrás de mil criaturas, e nessa espécie de pluralidade se afasta da unidade originária, primitiva, para a qual deve tender. Ao agir assim, ofende a ordem do universo.

Tal visualização encerra uma maravilhosa repulsa da poligamia e do divórcio, e é mais valiosa, penso eu, do que qualquer refutação sociológica contra esses desvios morais. Pois a metafísica é muito mais apropriada para convencer o espírito humano do que os dados técnicos, mesmo quando acompanhados de argumentos de índole psicossocial. Creio que em qualquer época de minha vida, esse raciocínio a favor da castidade, baseado no conceito da unidade, convenceria mais do que todos os outros.

Com esses breves comentários é-nos dado recordar, então, a memória deste extraordinário varão de Fé e de sabedoria, exemplo fulgurante de amor a Deus, que foi o grande Santo Agostinho de Hipona.


(Mons. João Clá Dias, EP - Santos comentados)